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Editorial: Acusar o Ubuntu pelas mazelas do "movimento software livre no Brasil" é criticar o movimento, e não o produto

TL;DR: um movimento filosófico que se deixa abater pela existência de um produto popular que não segue os seus princípios para mim indica insuficiência de energia ou coesão no próprio movimento, e não uma culpa do tal produto, que nem mesmo é afiliado a ele.

Ao longo da semana publiquei aqui não um, mas dois artigos de opinião de leitores, enviados por pessoas que acreditam descrever o momento por que passa o movimento Software Livre no Brasil.

Apenas publiquei, não opinei, e nem mesmo comentei (exceto uma rápida participação para esclarecer um fato errado sobre a licença educacional da AT&T para o Unix na década de 1970), porque estava em uma semana bem ocupada. Mas não acho que agora seja tarde demais para opinar.

Os 2 artigos de opinião do leitor têm algo em comum: caracterizam o Ubuntu (e seus usuários) como a causa ou o símbolo do mal que assola o tal movimento.

Já fui usuário do Ubuntu, já gostei bastante dos rumos que seu criador e a turma dele davam para o seu desktop open source e, na época em que primeiro introduziram o Unity e outras divergências em relação a componentes usuais do desktop open source, cedo percebi que eu não era mais o público-alvo que lhes interessava – afinal, como disse na sexta-feira o Mark Shuttleworth, "hoje o foco [da Canonical] é a nuvem e o mobile".

Opção deles, e que sejam felizes, mas não era o que eu buscava, e pulei fora – hoje uso CentOS. E frequentemente fico pensando na ironia triste que deve ter sido alcançar sucesso no (nicho do) desktop open source justamente no momento em que isso começou a ser, comercialmente, um ônibus pra lugar nenhum, e aí ter de dar um jeito de fazer o ônibus passar a ir na direção dos celulares e tablets, sabendo que ele já estava cheio de passageiros que queriam ir na direção original apesar de tudo, mas querendo adiar o desembarque deles.

* * *

Quanto aos argumentos de que o Ubuntu é causa ou símbolo das mazelas do movimento software livre no Brasil, eu tenho curiosidade em saber se as lideranças consolidadas desse movimento concordam, porque me parece haver várias outras causas, das quais vejo como símbolo maior a relação entre os membros históricos da Associação Software Livre e a organização do FISL – como era no início do século, contrastado com como é hoje.

Não acho que a causa seja o Ubuntu.

Vejo que existem vários outros sistemas operacionais que atraem usuários com conceitos que não são os da liberdade de software e, historicamente, mesmo limitando artificialmente a questão apenas às ofertas fortemente baseadas em código aberto, já houve outras ondas de popularidade no Brasil que atraíam usuários pelas suas demais características e não pela filosofia do software livre, que elas não representavam e nem desejavam.

Lembro de 2 exemplos que foram bastante acusados de pecados similares:

  • Conectiva
  • Kurumim

Mas há outros.

Em comum entre eles, vários elementos que são consequência da relativa popularidade: grande quantidade de how-tos contendo apenas procedimentos para essa distribuição específica, usuários que apreciam essa distribuição mas não aprendem as complexidades e sutilezas do seu ecossistema e filosofia, existência de iniciativas de divulgação e de apoio que se concentram nessa distribuição, etc.

* * *

Em comum com essa recente vilanização do Ubuntu por pessoas que se posicionam como porta-vozes do "movimento software livre" também está a acusação ao BR-Linux de heresia e a mim, seu autor, de infidelidade. Nas ondas anteriores também foi assim – já fui acusado de só publicar artigos sobre o Slackware, só sobre o Mandriva e só sobre o Kurumim, por exemplo – às vezes mais de um na mesma semana.

Mas eu não escrevo os artigos, eu divulgo os que os usuários escrevem e chegam ao meu conhecimento, não tenho o poder de fazer nascer artigos sobre o Gentoo.

Não me incomoda, até me diverte. Eu recebia esse tipo de acusação ("tem Windows no trabalho! escreveu um script para o mIRC! usou PowerPoint!") já nos anos 90, e nos breves anos em que eu fui membro da FSF e tentei usar só aplicativos com as 4 liberdades elas continuaram a ocorrer.

Dessa vez não foi diferente, e no segundo artigo da semana, que compreensivelmente atraiu bem menos atenção e reações do que o primeiro, está lá de novo a divertida "acusação" contra mim, dizendo que uso produtos de alguma marca que o autor do artigo abomina.

Não acho que eu seja grandemente relevante para o software livre ou para o código aberto. Escrevi um ou outro software de pequeno porte e interesse restrito, publiquei alguns volumes de documentação original em português, e atuo na divulgação do que acho interessante e do que chega ao meu conhecimento.

É divertido, faço isso desde 1996 (16 anos completos!) e pretendo continuar fazendo, mas não espero pela aprovação de integrantes de movimentos aos quais eu mesmo não aderir. Faz parte da vida, e a expectativa desses integrantes, de que o que eu escrever venha a representar a visão deles, é uma ilusão.

Mas eu sempre posso publicar aqui a visão deles, se eles me enviarem, como fizeram ao longo desta semana.

* * *

Os 2 parágrafos acima servem também para essa caracterização do Ubuntu e dos seus usuários como "o mal" que assola esse movimento. Se ele é "um mal" porque não oferece liberdade suficiente, certamente há "males" bem maiores, e que não compartilham com ele a presença de caminhos que facilitam um primeiro contato de novos usuários com o mundo do software livremente disponível.

Não adianta esperar que alguém de fora lance um sistema operacional que vá atrair e manter usuários interessados "na causa". O que atrai os usuários que vêem os sistemas operacionais e aplicativos como produtos, ou como acessórios do computador, não é necessariamente o que os fará ter interesse no "movimento software livre".

A relevância do movimento software livre é intrínseca e, caso não se sustente à luz de uma distribuição popular, é porque não encontrou mesmo força suficiente em si e nos que se unem ao redor dela, para conseguir se apresentar ao público que interessa a eles e convencê-los da sua mensagem.

Afinal, esperar que alguém que não seja integrante do mesmo movimento conquiste a popularidade e influência que o movimento almeja, e depois a ceda a ele, não me parece uma estratégia sólida, e nem jamais a vi ser adotada por instituições reconhecidas do movimento.

E, mesmo que fosse essa a estratégia, me parece que a fatia de mercado que o Ubuntu conquistou não é representativa do volume de público ao qual o "movimento software livre" deseja se apresentar, e que não está restrito a quem manifestou interesse pelo código aberto.

Em suma, um movimento filosófico que se deixa abater pela existência de um produto popular que não segue os seus princípios para mim indica insuficiência de energia ou coesão no próprio movimento, e não uma culpa do tal produto.

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