“O Libervis, um de meus sítios favoritos para informações sobre a luta contra DRM e contra outros cerceamentos de direitos digitais, publicou um artigo que me fez parar para pensar, e achei que valia a pena compartilhar as minhas dúvidas.
A FSF é mesmo muito importante, tanto pelo seu histórico como hoje em dia, nos seus gloriosos embates para tornar mais sólida e incontornável a nossa liberdade. Mas o que fazer quando temos a impressão de que esta organização pode ter se firmado uma vez ou outra em bases menos sólidas?
E não estou falando do recente caso em que o fundador da organização afirmou em um evento dela que o Linux viola patentes de software, e para isso se apoiou em um relatório velho de uma empresa cujo negócio é vender seguro protegendo empresas contra a possibilidade de patentes embutidas em softwares livres. Ele merece nossa compreensão e apoio por ter chegado onde chegou, e todos os seus eventuais aparentes deslizes sempre podem ser facilmente explicados analisando a solidez de sua base filosófica e da sua orientação sempre clara para todos.
O caso de hoje, colocado em debate pelo Libervis, é o das distribuições oficialmente sancionadas e recomendadas pela FSF, por estarem de acordo com os seus cânones. São elas: gNewSense, Ututo, Blag, Dynebolic, GNUStep e Musix. Eu acho fora de série a FSF ter uma posição tão firme e definida sobre quais as distribuições que ela recomenda e apóia, e sempre que vejo alguém defendendo radicalmente as posições dela tenho a certeza de que esta pessoa certamente usa uma destas distribuições com a chancela oficial. Faz parte da integridade deles seguirem as orientações na íntegra, do vocabulário à escolha de licenças, sem deslizes nem nos menores detalhes, e eu sempre os admiro por isso.
Mas aí é que vem o outro pé: o articulista do Libervis foi verificar qual a distribuição que sustenta o site da FSF, e é a não-sancionada Debian. A mesma tão criticada por incluir repositórios não-livres - isto apesar do contrato social dela ser tão estrito no que diz respeito à liberdade de software a ponto de rejeitar a licença FDL, da própria FSF.
Talvez achando que pudesse ser algum engano ou distração, o articulista foi questionar o próprio Stallman, que confirmou e achou tudo normal, já que a FSF não instala os softwares não-livres dos repositórios do Debian. Ah, assim pode? Não, ele teve o cuidado de acrescentar que não pode incluir o Debian na lista das distribuiçÕes recomendadas ao público, pois outras pessoas poderiam instalar os softwares dos repositórios não-livres.
A princípio eu fiz um paralelo com o pastor de uma comunidade que atuava em um ex-cinema ao lado do meu escritório lá por 1993, que acabou fechando quando descobriram que ele proibia os fiéis de assistir televisão, mas aí descobriram que ele tinha uma TV enorme no quarto dele, e assistia a novela das 8 todos os dias. Saiu até no jornal a explicação dele, dizendo que ele assistia porque sabia que devia desligar quando passasse material impróprio, mas não podia deixar os fiéis assistirem porque ele não podia confiar que eles saberiam reconhecer e resistir à tentação.
Mas logo essa comparação saiu da minha cabeça, pelas razões já explicadas acima: certamente Stallman tem uma razão mais forte para declarar o que disse, e defender não apenas o seu uso de uma distribuição não-sancionada, como ainda o simultâneo não-uso das distribuições recomendadas. E se esta razão não é óbvia para mim, é porque eu não conheço o contexto suficientemente bem, e certamente alguém saberá explicar por que isso não é contraditório e muito menos uma amostra de hipocrisia, como disse o articulista.
Mesmo assim, acho que é uma questão que merece debate, porque pra mim parece que o Debian e sua grande linhagem já fizeram mais pelo avanço (e não só pela popularização) do software livre do que algumas das distribuições que ostentam o selo de pureza oficial da GNU. O que o público do Br-Linux acha?”
A comparação com o tal pastor é perfeita.